30 mar 2020

30/03/2020 – ACFB – Informativo – As bases científicas do uso da Cloroquina e da Hidroxicloquina sobre a Covid_19

INFORMATIVO ELABORADO PELO GRUPO DE TRABALHO “CIÊNCIAS FARMACÊUTICAS 

E A COVID-19″

AS BASES CIENTÍFICAS DO USO DA CLOROQUINA E DA HIDROXICLOQUINA SOBRE

A COVID-19

          O processo de encontrar novas indicações terapêuticas para os medicamentos usados atualmente, definido como “redirecionamento terapêutico”, está recebendo crescente atenção. A cloroquina e a hidroxicloroquina, com indicação original para prevenir ou curar a malária, foram usadas com sucesso no tratamento de várias doenças infecciosas (HIV, febre Q, doença de Whipple e infecções fúngicas), reumatológicas (lúpus eritematoso sistêmico, síndrome do anticorpo antifosfolípide, artrite reumatóide, síndrome de Sjoëgren) e outras doenças imunológicas. De fato, há efeitos anti-inflamatórios, imunomoduladores, anti-infecciosos, antitrombóticos e metabólicos.

Dentre os efeitos biológicos da cloroquina e da hidroxicloroquina, é importante destacar suas propriedades antitumorais. Esses efeitos tornam esses medicamentos uma opção possível no tratamento de vários tumores associados à radioterapia e quimioterapia. Finalmente, o redirecionamento de cloroquina e hidroxicloroquina está sendo examinado atualmente para doenças neurológicas como neurossarcoidose, inflamação linfocítica crônica com realce perivascular do tegmento pontino responsivo a corticosteroides e esclerose múltipla progressiva primária. Vários ensaios clínicos em andamento vêm testando esses medicamentos em doenças não neoplásicas e neoplásicas.  As manifestações gastrintestinais e cutâneas são consideradas não graves, enquanto as toxicidades retiniana, neuromuscular e cardíaca são classificadas como eventos adversos graves.

A cloroquina é um derivado da aminoquinolona desenvolvido pela primeira vez na década de 1940 para o tratamento da malária. Foi o fármaco de escolha no tratamento da malária até o desenvolvimento de antimaláricos mais recentes, como pirimetamina, artemisinina e mefloquina. Recebeu a aprovação da FDA em 31 de outubro de 1949.

Os sais cloridrato, fosfato e sulfato de cloroquina podem ser classificados como altamente solúveis e altamente permeáveis. Dose oral de cloroquina é absorvida na faixa de 67% a 100% e o pico de concentração sanguínea é atingido em 30 minutos. A ligação às proteínas plasmáticas é de 40% a 60%. A eliminação ocorre principalmente pela urina, sendo que 50% é de cloroquina não metabolizada.

A hidroxicloroquina é uma mistura racêmica que consiste em um enantiômero R e S. É um medicamento comumente prescrito no tratamento de malária sem complicações, artrite reumatóide, lúpus eritematoso discóide crônico e lúpus eritematoso sistêmico. Foi desenvolvida durante a Segunda Guerra Mundial como um derivado da quinacrina com efeitos colaterais menos graves. Foi aprovada pela FDA em 18 de abril de 1955.

A biodisponibilidade da hidroxicloroquina é de 67% a 74%. Após dose oral, atinge pico plasmático em cerca de 3,5 horas. A ligação às proteínas plasmáticas é de cerca de 50%. A meia-vida após administração oral de 200mg é de 22 dias no sangue e 123 dias no plasma. A excreção renal é de 40 a 50%, sendo que cerca de 20% não é metabolizada.

A cloroquina e a hidroxicloroquina estão sendo investigadas no Brasil para o tratamento da SARS-CoV-2 (COVID-19), conforme divulgado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa – Conep, em 23 de março de 2020.

Mecanismo de Ação

A cloroquina inibe a ação da polimerase da hemoglobina nos trofozoítos da malária, impedindo a conversão da hemoglobina em hemazoína. A hemoglobina é tóxica para as espécies de Plasmodium. A cloroquina difunde-se passivamente através das membranas celulares e nos lisossomos, onde fica protonada, e não pode sair. Aumenta o pH endossômico e impede a glicosilação da ACE2 (Enzima Conversora da Angiotensina 2), o receptor que o SARS-CoV-2 tem como alvo para a entrada celular.

Os mecanismos exatos da hidroxicloroquina são desconhecidos. Foi demonstrado que se acumula nos lisossomos do parasita da malária, aumentando o pH do vacúolo. Essa atividade interfere na capacidade do parasita de proteger a hemoglobina, impedindo o crescimento e a replicação normais do parasita. Também pode interferir na ação da hemoglobina polimerase parasitária, permitindo o acúmulo do produto tóxico beta-hematina. O acúmulo de hidroxicloroquina nos lisossomos humanos também aumenta o pH do vacúolo, que inibe o processamento de antígenos, impede as cadeias alfa e beta do complexo principal de histocompatibilidade (MHC) classe II de dimerizar, inibe a apresentação de antígenos da célula e reduz a resposta inflamatória. O pH elevado nas vesículas pode alterar a reciclagem de complexos MHC, de modo que apenas os complexos de alta afinidade sejam apresentados na superfície da célula. Os peptídeos próprios se ligam a complexos de MHC com baixa afinidade e, portanto, serão menos prováveis de serem apresentados a células T autoimunes. A hidroxicloroquina também pode reduzir a liberação de citocinas como a interleucina-1 e o fator de necrose tumoral.

Toxicidade e Reações Adversas da Cloroquina

Pacientes com sobredosagem podem apresentar dor de cabeça, sonolência, distúrbios visuais, náusea, vômito, colapso cardiovascular, choque, convulsões, parada respiratória, parada cardíaca e hipocalemia. Deve ser tratada com tratamento sintomático e de suporte, que pode incluir emese imediata e lavagem gástrica com carvão ativado.

Os principais efeitos tóxicos da cloroquina estão relacionados às ações do tipo quinidina (estabilização da membrana) no coração. Outros efeitos agudos são depressão respiratória e irritação gastrintestinal grave. As manifestações tóxicas aparecem rapidamente dentro de uma a três horas após a ingestão e incluem: Distúrbios cardíacos – parada circulatória, choque, distúrbios de condução, arritmias ventriculares; Sintomas neurológicos – sonolência, coma e às vezes convulsões. Perturbações visuais não incomuns. Sintomas respiratórios – apneia. Sintomas gastrintestinais – irritação gastrintestinal grave, náusea, vômito, cãibras e diarreia. As crianças são especialmente sensíveis a efeitos tóxicos. Tonturas, náusea, vômito, diarreia, dor de cabeça, sonolência, visão turva, diplopia, cegueira, convulsões, coma, hipotensão, choque cardiogênico, parada cardíaca e respiração prejudicada são as características do envenenamento por cloroquina. A eletrocardiografia (ECG) pode mostrar diminuição da onda T, aumento do QRS, taquicardia ventricular e fibrilação. A hipocalemia está associada a envenenamento grave.

As contraindicações para o uso de cloroquina são o comprometimento da função hepática e renal, distúrbios do sangue, doenças gastrintestinais, deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase (G-6-PD), distúrbios neurológicos graves, alterações da retina ou do campo visual. A contagem completa de células sanguíneas deve ser realizada periodicamente em pacientes recebendo terapia prolongada com cloroquina. A cloroquina deve ser descontinuada se houver evidência de efeitos hematológicos adversos graves e não atribuíveis à doença em tratamento.

A dose letal de cloroquina para um adulto é estimada em 30 a 50 mg/kg e doses de cloroquina acima de 5 g administradas por via parenteral geralmente são fatais.

Toxicidade e Reações Adversas da Hidroxicloroquina

Pacientes com sobredosagem de hidroxicloroquina podem apresentar dor de cabeça, sonolência, distúrbios visuais, colapso cardiovascular, convulsões, hipocalemia, distúrbios de ritmo e condução, incluindo prolongamento do intervalo QT, torsades de pointes, taquicardia ventricular e fibrilação ventricular. Isso pode progredir para parada respiratória e cardíaca súbita. A sobredosagem deve ser tratada com lavagem gástrica imediata e carvão ativado a uma dose de pelo menos 5 vezes a dose de hidroxicloroquina em 30 minutos. O diazepam parenteral pode ser administrado para tratar a cardiotoxicidade, a transfusão pode reduzir as concentrações séricas do medicamento, os pacientes devem ser monitorados por pelo menos 6 horas, os líquidos devem ser administrados e o cloreto de amônio deve ser administrado para acidificar a urina e promover a excreção urinária.

A hidroxicloroquina não foi associada a elevações séricas significativas das enzimas durante o tratamento de doenças reumatológicas. Além disso, a lesão hepática clinicamente aparente é rara. Uma série de casos únicos (dois casos) de insuficiência hepática aguda atribuída à hidroxicloroquina foi publicada há vinte anos, mas relatos de casos de lesão hepática clinicamente aparente não apareceram posteriormente. Assim, a lesão hepática aguda com icterícia deve ser muito rara, se é que ocorre.

Uma exceção é o uso de hidroxicloroquina em doses relativamente altas em pacientes com porfiria cutânea tarda que pode desencadear uma lesão hepática aguda, com início repentino de febre e elevações acentuadas das enzimas séricas com aumento da excreção de porfirinas. Essa reação parece ser causada pela súbita mobilização de porfirinas e é frequentemente seguida por uma melhora nos sintomas porfíricos. A reação é incomum se a terapia é iniciada com doses mais baixas de hidroxicloroquina e é menos grave do que reações semelhantes que ocorrem com a cloroquina. De fato, baixas doses crônicas de hidroxicloroquina (100 a 200 mg duas vezes por semana) têm sido usadas para aliviar os sintomas em pacientes com porfiria cutânea tarda que são resistentes ou intolerantes à flebotomia, a terapia usual dessa condição.

Conclusão

As principais pesquisas publicadas a partir de fevereiro de 2020 sobre o uso de cloroquina e hidroxicloroquina foram realizadas levando em consideração a mudança do pH do endossoma e, consequentemente, modificações da glicosilação dos receptores ACE2 do coronavírus, causador da COVID-19. Contudo, a divulgação precoce destes resultados levou ao esgotamento de medicamentos à base de cloroquina e hidroxicloroquina nas farmácias, sem que houvesse uma prescrição médica para a sua utilização. Assim, estamos correndo um risco extremamente alto relacionado a: 1º – irá faltar medicamento para quem necessita, principalmente pacientes com doenças autoimunes e com malária que fazem seu uso contínuo; 2º – teremos uma série de pessoas que podem apresentar síndromes toxicológicas e reações adversas graves, principalmente aquelas com deficiência nos alelos gênicos da glicose-6-fosfato desidrogenase (G-6-PD).

Fontes:

https://pubchem.ncbi.nlm.nih.gov/compound/2719

https://pubchem.ncbi.nlm.nih.gov/compound/3652

https://www.drugbank.ca/drugs/DB00608

https://www.drugbank.ca/drugs/DB01611

MINISTERIO DA SAUDE. CONEP. COMISSAO NACIONAL DE ETICA EM PESQUISA. Boletim Ética em Pesquisa. Relatório semanal 01 de 23.03.2020. Informações atualizadas sobre protocolos de pesquisa que envolvem seres humanos relativas à COVID-19, submetidas para análise ética da Conep.

VERBEECK, R.K.; JUNGINGER, H.E.; MIDHA, K.K.; SHAH, V.P.; BARENDS, D.M. Biowaiver Monographs for Immediate Release Solid Oral Dosage Forms Based on Biopharmaceutics Classification System (BCS) Literature Data: Chloroquine Phosphate, Chloroquine Sulfate, and Chloroquine Hydrochloride. J Pharm Sci 94:1389–1395, 2005.

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